sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Religare

Havia um sol imponente por trás das persianas, mas a que chora litros estava submersa no leito. Titubeou até compreender que teria de sair dali, duelar com o sol e as intempéries de existir. Foi ao encontro do emaranhado público e uma Senhora de seus 80 anos se aproximou, desencadeando uma série de reclamações sobre o mundo, os humanos, a lotação dos vagões, os atendentes do guichê.

A menina que chora litros risca o rosto com um sorriso meia-lua. Não contente, a senhora a procura, mais uma vez, e fala que esteve na Alemanha, fala do aquecimento global, das religiões das pessoas e, no final, a menina conclui entre dentes: - Estamos todos infelizes! Dissera a frase incluindo-se e incluindo-a. Estranhamente, a senhora concordou e sorriu. Achou seu comentário pertinente e declarou: - Sou evangélica. Para seu espanto, ela não lhe perguntou nada sobre sua fé.

Respirou fundo e dispersou-se da senhora até que, vejam vocês, a religião estava mais uma vez ali no vagão. Agora era uma senhora mais jovem, trajando uma camisa brilhante e arroxeada. Ela estava muda, a menina não sabia que dentro de alguns segundos uma voz dispararia de um gatilho. Mas percebeu a sua presença, não pelas vestes extravagantes para uma manhã de trabalho, mas pela falta de educação. A mulher encostara-se ao cano, onde as pessoas pegam por conta dos sacolejos, e, por isso, impedia que outros usuários se segurassem. Concluiu que poucos sabem estar na coletividade. Poucos sabem se importar com o outro e respirou fundo. Não sabia que a mulher traria na língua um Jesus. Um Jesus, desprendido, amigo, preocupado com o conforto alheio. Posteriormente, riu do paradoxo.

. DUAS RELIGIÕES CRISTÃS.
Evangélica
Católica


De repente, a voz da católica fuzilou todos os usuários. Rezou o Pai Nosso católico e solicitou um Amém de todos. Poucos responderam, ela se enfureceu, pediu que dissessem Amém. Dessa vez, mais vozes responderam. A menina estarreceu, continuou achando interessante a escuridão por trás da janela e nada disse. A mulher continuava com o seu discurso cristão e, por fim, se vangloriou por estar ali, na frente de todos, dizendo a palavra. Negritou o EU quando anunciou: - EU estou aqui para pregar a palavra do Senhor!

. DUAS FILOSOFIAS.
Jesus, eu te amo e quero ir para o teu reino
Uma boa ação despretensiosa


É certo que há uma espécie de ímã entre a menina e estes que levam a palavra. Esta palavra que cada um julga ser A PALAVRA, única e verdadeira. É certo, também, que a que chora litros sempre tem um sorriso para eles. Sempre pensa em dar-lhes um sermão, parodiando o do Monte Sinai, mesmo sem conhecê-lo. Diria, em voz grave, esta que lhe deram depois de arrancarem-lhe as amígdalas e quase a conduziram a mim: - Senhores, este Jesus que pronunciam por aí, a esmo, em paradas de ônibus, em shoppings centers não gastava salivas, não vendia uma idéia, não trajava uma camisa com uma logomarca. Aquele Jesus olhava para os lados, apenas isso. Tente olhar para os lados.

A que chora litros apenas emudecia. Para atravessar o silêncio, costumava sorrir. O sorriso era um pensamento que ela não pretendia verbalizar. Não pude deixar de sentir pavor da menina ao atravessar a rua com tanta atenção, ela parecia disposta, nada parecido com aquela que se levantara cambaleante do leito minutos atrás.

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