quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Jogo Divino

Adormeceu apoiada em duas perguntas ao seu irmão falecido. Ele não a respondera, quer dizer, ele enviara pessoas desconhecidas para dizer que ela estava enganada. As pessoas fediam a mofo e não inspiravam confiança. Mas estranhamente elas lhe diziam a verdade. Uma verdade que ela não podia crer.

. Adeus, meu irmão .
Abril de 1992


Revirou-se na cama, desacordada, fingindo uma morte súbita para si. Mas estava tão viva, tão disposta que o rádio relógio não perdoou sua apatia e lhe disse adeus.

Vi-a mortificada com as respostas noturnas. Respostas estas que lhe abraçaram avidamente como um quarto sem janelas. Constatou que seu fôlego jazia na varanda apertada de seu apartamento. Constatou, também, que talvez aquelas respostas fossem mesmo mentirosas, mas foram enviadas com o propósito de acalmar-lhe as têmporas e as vontades.

Declarou que o coração corroído permaneceria assim, disse isso olhando nos meus olhos. Não faria nada para atenuar o que quer que fosse. Não lhe confortaria com chocolates ou sexo. Deixaria que o tempo estilhaçasse-o. Manteria a gastrite e as lágrimas.

A que chora litros não tinha mais coragem de ter esperanças. A esperança era uma brincadeira que Deus lhe fazia todas as manhãs. Podia ouvir Deus dizer-lhe: “De novo tendo esperanças? Como você é tola!”.

Calçou seu salto alto como quem veste luvas de boxe. Exigiu entre dentes uma nova resposta do seu irmão, desta vez, a que ela gostaria de ouvir. Uma resposta que recobraria sua fé, seu ar e lhe deixaria beber ao menos um copo d’água. Mas o que ela ouviu foi motores enfurecidos que partiam para longe dali.

Desejou um copo d’água e viu quando Deus gargalhou, vencendo mais uma vez aquele jogo matinal...

sábado, 20 de setembro de 2008

Não, obrigada


Acordou no metrô e olhou o que trajava. Talvez ainda fosse uma camisola de algodão, mas percebeu, aliviada, que os sapatos combinavam com o figurino. Minutos antes, tinha se vestido e tomado café involuntariamente. A menina que chora litros nem percebe o trajeto que leva seus pés até a porta do escritório. Agora é ela e uma chave escondida numa bolsa. Seus objetos estão ali ao pé da porta até ela tatear a bendita chave, fria e misteriosa.

"Mais um dia", murmurou enquanto abria as persianas. O cansaço do sol nos cabelos e a caminhada mecânica de todos os dias não a abalavam. Estafante mesmo era ter que SER todos os dias. SER era a tarefa mais desgastante que conhecia. Um vislumbre ao espelho a fez perceber que as sobrancelhas estavam desajustadas, nunca mais se importara com aquela estética tola acima dos olhos. Franziu a testa para mostrar a sua desaprovoção.

Há algum tempo não se importara com o que estava se transformando. Apenas vivia, sem se importar com quem estava ao lado. Depois daquele dia fatídico, veio um sábado de sol latente que emergiu sob seus olhos e ela, com lágrimas incontestáveis na face, decidiu abandonar o desânimo e pôr ordem na algazarra do seu leito.

. Sábado, 9h .
3 horas perdidas na sua vasta vida.


Sentia um tremor por entre os dentes, mas se pôs a derrubar toda a estante e reorganizá-la. Ao passo que se desconstruía, corroída de decepção e falta de vontade. Sentia-se impotente, turva e, principalmente, sozinha. Mas o que diabos estava pensando? Há muito Deus lhe concedera mil graças, o que ela poderia pedir mais?

Foi aí que a vi orar. Algo que não fazia há anos, talvez mais que isso, talvez eu nunca a visse orar antes, de fato. A que chora litros pôs-se de joelhos e as lágrimas escorreram por entre seus dedos. Ela orou, mas não pediu nada para si, absolutamente nada. E concluiu aquela oração com um "Lembre-se, eu não preciso de nada. Eu disse, nada".

domingo, 14 de setembro de 2008

Por quê?

Vi a menina à mesa. Pousava a mão na cabeça, apreciando a desordem no prato e experimentando a gastrite nos dentes. Por um momento, tive certeza de que empurraria o prato e sairia da mesa. Mas o que ela fez foi se deixar levar por uma memória, já turva e esbranquiçada pelo tempo.

Ouviu sua voz ponderada, quase corroída, dizendo “Como foi seu dia?” e na sua face algumas lágrimas tropeçaram no nariz. Quando ouviria tais banalidades da boca de alguém que a ama? Pensou, segurando a gastrite com a mão esquerda. Ele esteve ali por alguns anos, fazendo-lhe perguntas que nas entrelinhas continham um “eu te amo”.

A segurança e a certeza há muito fugiram de sua saliva. A que chora litros se refaz e num fôlego diz, baixinho, para o nada “Ninguém me amou como você. Por que me acostumou tão mal?” e não recebe resposta alguma. Ele não responde. Ele não está. Ele não baterá sua porta. Ele não mais se importa. Ele se foi há muito, há anos. Ela reclama, impotente, por ele não ouvi-la e contorna o prato com o garfo.

Agora lá está a que chora litros. Um prato, uma insegurança e dois desejos aleijados pelo tempo. Titubeia até abandonar o prato. Pergunta-se com o estômago em frangalhos “Por quê?” e o que ouve é o telefone persistente. Mas não é ele.

Ele não virá. Ele não ligará. Ele não a vê. Ele não sabe como é o seu quarto, nem como franze a testa quando está aborrecida. Ela envelheceu, não tem mais aquele sorriso extravagante nem a mania tola de cantarolar, propositadamente, a letra errada de alguma música que conhece bem.

Anos impregnada de insegurança e ausência de amor fez com que ela se tornasse aquilo no espelho: taciturna e indisposta. Uma visão que ele não conhece. A menina sabe que ele não a reconheceria naquele sapato novo, naquela casa nova, naquele corte capilar novo.

E, antes, que tudo aquilo fosse embora mais uma vez. Ela lembrou-se da sua voz, irritada e bruta, dizendo: “Ninguém vai te amar como eu...”. Balançou a cabeça e respondeu, inaudível: “Você venceu”.

Afastou o prato com vigor de si e não conseguiu lembrar as notas musicais da sua voz. Não mais.

. Uma música .
"When you were here before
Couldn't look you in the eye
You're just like an angel
Your skin makes me cry"

sábado, 6 de setembro de 2008

Insônia de Platão

Era sábado à noite, aquele tão esperado há cinco dias atrás, todos transbordantes de infortúnios e poucos risos. Lembro de vê-la encostada no corrimão de uma escada. Na penumbra, lia as primeiras páginas de um livro, ao passo que era tomada por Platão, idealizando cada descanso vindouro. O que não aconteceria.


. UM LIVRO NOVO .
A Cidade do Sol


A menina que chora litros tremelicava enquanto sua voz se contorcia relutante. Precisava esmurrar alguma coisa. Mas o quê? Sobrava-lhe um pouco de lucidez ao contabilizar os prejuízos da sua violência. Então, calou-se no banheiro solitário. Observou as pernas se mexerem involuntariamente, tendo espasmos redundantes. Ao espelho, apreciou os lábios protuberantes e os olhos machucados por trás dos óculos...

Afastou-se dali, deixou-se cair na cama e não dormiu. Sussurrou meu nome com a voz quebradiça e, então, emudeceu. Por um momento pediu perdão por fazê-lo.

Platão acariciava seus cabelos. E lá estava com seus 17 anos, seu jeans folgado e o tênis vermelho surrado. Lamentava-se por não ter sido tão feliz naquela época, não tanto quanto deveria. Tinha muito e quase tudo: Uma bolsa sem cartões de crédito e um braço repleto de pulseiras. Era tudo, concluíra num timbre rude.


. UMA MEMÓRIA .
Adolescência, 1997

Jamais se imaginaria num salto, tampouco trajando roupas bem passadas. Repudiou-se por ter envelhecido. A menina possuía maçãs faciais avermelhadas e gorduchas, o que disfarçavam alguns poucos cinco anos que passara POR e SOBRE ela. Ela sabia disso e agradecia, em silêncio, pelo prêmio divino.

O domingo abraça a que chora litros numa fortaleza invejável. Sabia que ele estava à espreita, pronto para o bote final. Pude ver quando ela desejou que as pálpebras desmoronassem no seu rosto, para que ela fugisse dali, daqueles dias repetidos e sem trégua. Fugir da pouca sorte que crescia resistente como uma erva daninha no seu jardim.

E Platão entendia-lhe bem. Mas estava certa que suas lágrimas, não. Estas nem o imaginário poderia pousar a sua ficção para compreendê-las.

A menina revirou-se e, mais uma vez, não dormiu.
 

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