domingo, 14 de setembro de 2008

Por quê?

Vi a menina à mesa. Pousava a mão na cabeça, apreciando a desordem no prato e experimentando a gastrite nos dentes. Por um momento, tive certeza de que empurraria o prato e sairia da mesa. Mas o que ela fez foi se deixar levar por uma memória, já turva e esbranquiçada pelo tempo.

Ouviu sua voz ponderada, quase corroída, dizendo “Como foi seu dia?” e na sua face algumas lágrimas tropeçaram no nariz. Quando ouviria tais banalidades da boca de alguém que a ama? Pensou, segurando a gastrite com a mão esquerda. Ele esteve ali por alguns anos, fazendo-lhe perguntas que nas entrelinhas continham um “eu te amo”.

A segurança e a certeza há muito fugiram de sua saliva. A que chora litros se refaz e num fôlego diz, baixinho, para o nada “Ninguém me amou como você. Por que me acostumou tão mal?” e não recebe resposta alguma. Ele não responde. Ele não está. Ele não baterá sua porta. Ele não mais se importa. Ele se foi há muito, há anos. Ela reclama, impotente, por ele não ouvi-la e contorna o prato com o garfo.

Agora lá está a que chora litros. Um prato, uma insegurança e dois desejos aleijados pelo tempo. Titubeia até abandonar o prato. Pergunta-se com o estômago em frangalhos “Por quê?” e o que ouve é o telefone persistente. Mas não é ele.

Ele não virá. Ele não ligará. Ele não a vê. Ele não sabe como é o seu quarto, nem como franze a testa quando está aborrecida. Ela envelheceu, não tem mais aquele sorriso extravagante nem a mania tola de cantarolar, propositadamente, a letra errada de alguma música que conhece bem.

Anos impregnada de insegurança e ausência de amor fez com que ela se tornasse aquilo no espelho: taciturna e indisposta. Uma visão que ele não conhece. A menina sabe que ele não a reconheceria naquele sapato novo, naquela casa nova, naquele corte capilar novo.

E, antes, que tudo aquilo fosse embora mais uma vez. Ela lembrou-se da sua voz, irritada e bruta, dizendo: “Ninguém vai te amar como eu...”. Balançou a cabeça e respondeu, inaudível: “Você venceu”.

Afastou o prato com vigor de si e não conseguiu lembrar as notas musicais da sua voz. Não mais.

. Uma música .
"When you were here before
Couldn't look you in the eye
You're just like an angel
Your skin makes me cry"

Um comentário:

Paulo César Nascimento disse...

Olhos marejados, turvos de tanta memória, a que chora litros segue trêmula, porém imperturbável: apesar da voz ausente, ela sabe que os sons são feitos de ar.

 

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