quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Terças-feiras, um plural singular

Deleito-me todas as terças-feiras, dia em que a que chora litros vai ao analista. Não, não é exatamente o que ela diz, encharcada na cadeira reclinável, para o senhor de óculos miúdos, que me instiga. Mas a sua proximidade do local e, posteriormente, a sua volta para casa. Compraz-me relatar o fato em letras graúdas. Comemoro a sua ida ao terapeuta com aplausos curtos, a fim de que ela não ouça. Apenas isso. Se além de chorona, ela fosse surda... Eu não deixaria de emitir assobios junto a aplausos barulhentos.

Eis aqui um relato fidedigno. Vejo a menina que chora litros descer da condução, sempre impulsionada por um solavanco irredutível de um motorista. Seus sapatos desconfortáveis pisam no barro vermelho de Brasília. Uma Brasília de 20% de umidade e um sol em ponto-cruz no céu. Como se não bastasse o desconforto meteorológico, há os seus sapatos e os carros em fúria até atingir o prédio interno, onde um homem de óculos miúdos e voz de dublê de sessão da tarde a espera.

. UMA PREVISÃO METEOROLÓGICA .
20% de umidade
Poeira vermelha



A recepcionista estranha sua ida tão cedo e faz um gesto que lhe confere mais uma ruga para sua coleção. A menina apazigua a excitação da moça, dizendo: – Vou esperar, não se preocupe. Aquela frase, ao som de carros a 100 km/h, parecia-lhe uma piada. Certamente, pensou: – Não tem nada para fazer? E tinha, mas não da hora do trabalho para o horário do médico (ou "o médico" seria um vendedor de lágrimas?).

Pôs-se diante do livro que agora estava no final. Com tantas cadeiras vazias, uma moça de all star senta-se justamente ao seu lado, sacolejando-a na cadeira. Prosseguiu com o livro, sua personagem passava fome naquelas letras impressas e ela havia comido minutos atrás um camarão rubro, de feições fortuitas – Envergonhou-se.

A voz com seu nome torna-se audível depois de pronunciada três vezes. E a menina se ergue da cadeira, com os olhos posados na exclamação. Ele sorri. Ela sorri. Os dois conversam. Ela diz que chora. Ele já sabe, os lenços estão sobre a mesa para que ela os use. Ela revela o que deve ser feito. Ele concorda.

A menina que chora litros nunca sabe se a concordância passiva do vendedor de lágrimas é uma estratégia psicológica ou se ela tem razão. Mas nunca pergunta, prefere manter-se no seu personagem de cliente/paciente.

Vejo-a atravessar a rua, com semi-taquicardia, e os olhos borbulhantes e salgados. Carrega um livro de 480 páginas, marcada na página 344 com um manuscrito. A menina fica apreensiva com a mulher loura que investiga suas vestes e volta-se para o seu calçado com interesse. O óculos escuro, um escudo da percepção alheia, permite que ela veja QUEM é aquela mulher. Passado alguns segundos, a mulher tira da bolsa um óculos escuro para compartilhar da olhadela particular. Só eu sei o pavor da menina diante da investigação humana.

. UM MANUSCRITO .
Perfume: A História de um assassino, Patrick Suskind – R$ 39,00
A cidade do sol, Khaled Hosseini– R$ 23,90
Orgulho e preconceito, Jane Austen – R$ 7,20

Pude ver o alívio nos ombros da que chora litros quando a condução parou ao seu lado, convidando-a a solavancos durante 40 minutos.

2 comentários:

Anônimo disse...

não tenho o que dizer além de que vc escreve muito bem, e que as histórias da menina que chorava litros me prende...
parabéns

Anônimo disse...

:O
Putamente bom.
Parabéns.
Ganhou uma leitora fixa :D

 

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